terça-feira, 30 de abril de 2019

CORRUPÇAO NA DITADURA

O Grupo Halles surgiu no boom de criação de instituições financeiras da década de 60. Era notoriamente conhecido como um dos bancos mais agressivos no começo da década de 70. O Halles chamava atenção também por sua coleção de arte, que continha vários painéis de Portinari, incluindo o original encomendado pelo magnata Assis Chateaubriand para decorar a sede da revista O Cruzeiro. Orgulho de seu fundador, Francisco Pinto Jr., o banco entrou na onda da multiplicação de dinheiro aproveitando os juros da política de venda de títulos do governo brasileiro – pensada justamente para salvar as instituições financeiras.
Refém de empréstimos no exterior, o esquema encontrou seu fim com a elevação absurda da inflação e as crises do petróleo, que apertaram o cerco e impediram que o esquema fosse renovado e o Banco Halles se viu em uma situação totalmente insustentável.
“Então ele faliu e todo mundo quebrou”, você deve estar pensando.
É, não exatamente. Conheça o caso.
POST BANCO HALLES

O CASO HALLES
Por Aloysio Biondi – disponível neste link

Sempre contornando a lei, nenhum setor ganhou tanto e proporcionou tanto lucro aos grandes grupos, nos últimos anos, quanto o mercado financeiro. As vítimas diretas foram os investidores que perderam suas poupanças na quebra de financeiras, como em 1968 e 1969, ou na queda de cotações e quotas de Fundos de Investimentos, ante a baixa nas Bolsas, a partir de 1972.

Por mais simpatia que se tenha para com as perdas do pequeno investidor, esse não é, porém, o ponto mais grave da questão. O que importa é que a especulação no mercado de capitais tem resultados danosos sobre toda a economia — ou, em outras palavras, suas vítimas indiretas são os 100 milhões de brasileiros, às custas dos quais uma minoria tem realizado lucros fabulosos. As aberrações no mercado de capitais contribuem para perpetuar a inflação — que se pretende combater com a contenção dos salários. E, ainda retardam (e distorcem) o processo de desenvolvimento, já que a poupança do país não é utilizada para a execução de projetos, a montagem de fabricas, a criação de empregos e fontes de renda, enfim — mas para a especulação e lucros de grandes grupos.

Depois das estripulias nas Bolsas de Valores em 1971, o mercado financeiro concentrou-se no “jogo de ganhar juros” no “mercado aberto”. Sem que a opinião pública fosse alertada, montou-se uma nova fonte de inflação e de concentração de renda. E de endividamento no exterior — pois o Brasil tomava empréstimos no exterior apenas para serem aplicados em títulos de renda fixa.

A GRANDE GOELA
Apesar de desconhecido do grande público, o “mercado aberto” movimentou mais de 100 bilhões de cruzeiros em 1973. E isso somente em Letras do Tesouro Nacional. Enquanto o recorde de movimento diário nas Bolsas, no auge da “corrida”, mal passou de 100 milhões de cruzeiros, o open market está movimentando, neste começo de ano, entre 2,5 e 3 bilhões de cruzeiros — sempre levando-se em conta apenas as Letras do Tesouro Nacional, e não os demais títulos nele negociados.

Como surge esse monstro? Ele tem relação direta com o modelo de desenvolvimento aberto para o exterior — e a política de endividamento externo adotada nos últimos anos. É simples entender. Numa explicação esquemática:

  • Uma empresa obtém um empréstimo, em dólares, no exterior;

  • Com os dólares “na mão”, procura o Banco Central do Brasil para trocá-los por cruzeiros (pois ela só pode gastar cruzeiros dentro do Brasil);

  • O Banco Central, para trocar esses dólares, precisa, evidentemente, “emitir” cruzeiros para entregar à empresa;

Agora, um parêntese — para que servem os dólares tomados emprestados no exterior? Exatamente para que o país pague seus compromissos externos, a saber: importações, juros de empréstimos (ou os próprios empréstimos), lucros que devem ser remetidos a matrizes de subsidiárias, etc. Assim:

  • Uma empresa precisa pagar uma importação que realizou (ou qualquer outro compromisso assumido no exterior).

  • O pagamento, evidentemente, será em dólares. Então, a empresa procura o Banco Central, para comprar esses dólares. Isto é, entregará cruzeiros ao Banco Central, e receberá dólares.

  • Tudo se passa como se o Banco Central, que emitiu cruzeiros para comprar dólares de uma empresa que obteve empréstimo no exterior, recebesse esses cruzeiros de volta, de uma empresa que precisa comprar dólares para realizar pagamentos no exterior.

Isso, em situações de normalidade. A partir de 1972, porém, a enxurrada de dólares entrados no Brasil era maior do que as necessidades de pagamentos no exterior. Então, o que acontecia? O Banco Central comprava os dólares de empresas que tomavam empréstimos no exterior, e não tinha a quem vender esses dólares, que passavam a formar as chamadas “reservas”. E, como não vendia os dólares, também não recebia, de volta, os cruzeiros que havia emitido para comprá-los. No final das contas, isso significava que a quantidade de cruzeiros emitidos aumentaria rapidamente. Qual o mal? Diz a teoria que um excesso de dinheiro em mãos do público provoca a inflação. Para evitá-lo, surgiu o open market, ou mercado aberto.

À medida que sobrassem dólares no Banco Central, cresceria o papel-moeda em circulação; uma forma de recolhê-lo de volta aos cofres do Banco Central seria a venda de títulos do governo, as Letras do Tesouro Nacional — pois o comprador dos títulos entrega cruzeiros ao Banco Central, que os retira de circulação. As LTN têm um prazo de 90 e 180 dias. Ora, era preciso vender LTNs em quantidades maciças, pois, como as reservas cresciam rapidamente, as emissões em cruzeiros corriam o risco de tomar o mesmo ritmo. Para atrair grandes compradores — isto é, empresas e as próprias instituições financeiras — permitiu-se que as LTN fossem, revendidas. Uma empresa compra 100 milhões cm LTN e, apesar do prazo de vencimento ser de 90 e 180 dias, pode revendê-las, a outra empresa, muito antes desse prazo. Como uma “Bolsa” para LTNs (e Obrigações Reajustáveis do Tesouro), surgiu o “mercado aberto”. Grandes instituições financeiras (bancos de investimentos, corretoras) montaram esquemas de forma que a empresa A comprasse LTNs por três dias, e já houvesse outro cliente B para recomprá-las por cinco dias e depois passá-las a um cliente C, e assim sucessivamente. Qual o interesse de todas essas empresas? Receber juros e correções monetária, pagos pelo governo, aos compradores de LTNs.

RAPOSAS VELHAS
As financeiras vendem letras de câmbio também com prazo de meses para resgate — e estão proibidas de recomprar essas letras, antes de vencido o prazo. Os bancos de investimentos e bancos comerciais podem aceitar depósitos a prazo fixo, também de meses, sobre os quais pagam juros e correções monetária, e que também só podem ser sacados apôs aquele prazo.

Hoje, no entanto, além dos títulos do governo, o “mercado aberto” negocia também letras de câmbio, letras imobiliárias e certificados de depósito bancário aos mesmos prazos curtíssimos, de até três dias.

Quais os males dessa situação, e por que o Banco Central hesitou em combatê-los, em 1973? Aqui entra em cena o endividamento externo do Brasil — e seus efeitos inflacionários.

O Brasil assumiu uma dívida de 13 bilhões de dólares, dos quais aproximadamente 8 bilhões de dólares correspondem a empréstimos em moeda.

Ora, um financiamento externo tem sua aplicação vinculada, isto é, o empréstimo é concedido para a compra de equipamentos, ou montagem de uma fábrica, contribuindo portanto para o crescimento econômico. Inversamente, o empréstimo em moeda é livremente utilizado pela empresa que o toma. Qual foi o destino dos empréstimos externos ao Brasil nos últimos anos? Serviram para alimentar a especulação (inclusive a com imóveis) — e a inflação, sob várias formas.

UM TRISTE BALANÇO
O “mercado aberto” falhou como arma para conter a expansão do dinheiro em circulação — e, mais ainda: contribuiu, até, com essa expansão. Efetivamente, segundo dados do Banco Central, as emissões de papel-moeda, em 1973, atingiram 6 bilhões de cruzeiros — e o meio circulante cresceu de 11,3 bilhões de cruzeiros para 17,2 bilhões de cruzeiros, ou o dobro do total de 8,5 bilhões de cruzeiros registrado no final de 1971. Com isso, os meios de pagamento (isto é, o dinheiro “girando” dentro da economia, esquematicamente) cresceram quase 50%, contra uma previsão de apenas 20% — provocando inflação.

Teve-se, em 1973, um quadro muito semelhante ao registrado em 1968. Apesar da grande expansão do dinheiro em circulação, as empresas têm dificuldades em obter crédito nos bancos. Onde estaria o dinheiro? Em 1968, ele estava nas mãos de algumas poucas empresas — e instituições financeiras — que manobravam para derrubar o cruzeiro, isto é, para forçar sua desvalorização, e, com isso, realizar grandes lucros. Em 1973, o dinheiro foi parar nas mãos das grandes empresas — e instituições financeiras — para uma especulação também lucrativa: o jogo de ganhar juros, com a compra dos títulos de renda fixa (letras de câmbio, letras imobiliárias, certificados de depósitos bancários) e operações no open market.

Esse jogo pode ser efetuado sob duas formas: ou com a obtenção de empréstimos no exterior, ou com o levantamento de recursos nos próprios bancos brasileiros:

  1. a) Empréstimos externos — como visto, os cruzeiros resultantes desses empréstimos são de livre aplicação. Tornou-se comum as grandes empresas — e também as instituições financeiras— realizarem empréstimos apenas para comprar títulos. Por quê? As taxas de jures no mercado internacional não vão além de 10%, e já estiveram a 7% ao ano. Mesmo com as desvalorizações do cruzeiro, ainda em 1972 era possível obter empréstimos no exterior a um custo final (juros do banqueiro internacional, mais desvalorizações) de 24% e 27% ao ano, e aplicá-los, internamente, naqueles títulos, para obter uma renda de 27% a 30%, ganhando juros de 3% a 6% ao ano (o que pode parecer irrisório, mas não é, levando-se em conta as fabulosas quantias aplicadas no mercado financeiro, nos últimos anos).

  1. b) Empréstimos internos — em certas operações, as empresas podem obter “empréstimos” nos bancos brasileiros a juros de 1,3% e 1,5% ao mês. Nesse caso, torna-se altamente vantajoso conseguir tais recursos, e aplicá-los em letras de câmbio e outros títulos, a 2,5% e 3% ao mês, embolsando a diferença de juros. Essas distorções explicam os incríveis saltos na venda de títulos de renda fixa no Brasil entre o final de 1971 e o final de 1973. Em dois anos, o total de letras de câmbio passou de 11,8 bilhões de cruzeiros para 36 bilhões de cruzeiros, triplicando (o total é equivalente ao dobro do papel-moeda emitido pelo governo e em circulação no país); as letras imobiliárias dobraram de 3,2 bilhões de cruzeiros para 6,6 bilhões de cruzeiros; os depósitos a prazo fixo dos bancos de investimento (com certificado) passaram de 1,6 bilhões de cruzeiros para 7 bilhões de cruzeiros.

EUFÓRICOS BALANÇOS
O jogo de ganhar juros pode ter sua dimensão avaliada pelos resultados dos balanços das empresas: o melhor exemplo continua a ser os resultados obtidos pela Ericsson, que em 1973 obteve um lucro financeiro, isto é, resultante de juros e correção monetária, no montante de 29,4 milhões de cruzeiros, ou praticamente a metade do lucro resultante de suas operações, que chegou a 62 milhões de cruzeiros. O próprio balanço da Ericsson, aliás, pode levar a acreditar que, no Brasil, vinha sendo mais conveniente entrar no “jogo de ganhar juros” do que produzir: o lucro operacional da empresa caiu de 76,6 milhões de cruzeiros para 62 milhões de cruzeiros, de 1972 para 1973, enquanto o “lucro financeiro” subia de 13,5 milhões de cruzeiros para 29,4 milhões de cruzeiros.

Para as grandes empresas, o mercado aberto e a expansão dos títulos de renda fixa foi um alto negócio — como para as instituições financeiras, que evidentemente também participaram dele.

Para o país, o mercado aberto estava sendo um péssimo negócio. Apesar da grande expansão do dinheiro em circulação, faltava crédito para atender aos negócios das pequenas e médias empresas (centenas de milhares). Com isso, havia duas conseqüências, ambas inflacionárias:

  • de um lado, o governo hesitava em reduzir a expansão dos meios de pagamento, com medo de que a “escassez” de crédito (que, na verdade, não existe; o que existe é uma concentração do dinheiro em um setor) se acentuasse, provocando uma crise de liquidez, com falência e queda no ritmo de negócios;

  • de outro lado, o mercado financeiro, argumentando que havia “escassez” de dinheiro, passou a cobrar taxas de juros mais altas de seus clientes — e a pagar taxas de juros mais altas aos participantes do “jogo”.

FIM À ROTINA
A inflação ganhou intensidade, nesse começo de ano. O mercado financeiro, que já vinha adotando juros mais altos que os permitidos pelo governo, iniciou uma campanha para sua elevação oficial, sempre argumentando com a “escassez de dinheiro”, e alegando que, com a maior inflação, era preciso pagar juros mais altos aos compradores de títulos, ou eles teriam prejuízo — esquecendo-se de dizer que os juros no Brasil já são os mais altos de todo o mundo.

O mercado financeiro acreditava que a batalha estava ganha, a partir de dois dados:

  1. a) Rotina — desde 1967 todas as pretensões do mercado financeiro foram acolhidas pelas autoridades monetárias. Às vezes encenava-se uma redução na taxa de juros — mas ela era, na prática, elevada através de outros subterfúgios;

  1. b) A situação cambial do Brasil — e aqui volta à cena a política de endividamento. O Brasil precisa pagar este ano ao exterior, pelos cálculos mais otimistas, nada menos de 5,3 bilhões de dólares, dos quais 1,5 bilhão de dólares correspondem ao déficit na balança comercial (importações maiores que as exportações); 1,8 de amortização da dívida, e cerca de 2 bilhões em serviços (juros da dívida, remessas de lucros, royalities, turismo, fretes). Ora, esses 5,3 bilhões de dólares não entrarão no Brasil através de empréstimos de governo a governo, ou de instituições financeiras, como o BID, ao governo brasileiro. Eles terão que ser obtidos através de empréstimos às empresas situadas no Brasil (nacionais, ou subsidiárias de matrizes estrangeiras). E aí surge o “nó” do modelo brasileiro: o que é que as empresas fariam com 5,3 bilhões de dólares tomados emprestados no exterior? Eles terão que ser, forçosamente, aplicados na compra de papéis de renda fixa, isto é, no mercado aberto – que deve oferecer juros altos, para compensar os juros pagos aos banqueiros internacionais, e ainda deixem um lucro às empresas “tomadoras” dos empréstimos, ou elas não se interessarão pelos empréstimos — e o país ficará sem as divisas para pagar seus compromissos.

Foi jogando nesses dados que o mercado financeiro começou a elevar as taxas de juros, constantemente, nos últimos meses, procurando criar uma situação de fato que seria apenas “oficializada” pelo governo.

A euforia no mercado financeiro acumulou distorções. A pretexto de que o crédito era escasso, e era preciso atender às empresas, os bancos comerciais emprestaram acima de sua capacidade. As financeiras, emissoras de letras de câmbio, deram início a operações que “driblam” a legislação, através das “promotoras de vendas” — e passaram a enfrentar dificuldades no recebimento de prestações devidas por compradores de bens através do crediário (não se afasta a hipótese, também, de que tenham ocorrido emissões de letras de câmbio “frias”, isto é, sem o “apoio” de uma operação de compra e venda).

Para coroar, houve a mudança no mercado mundial de dinheiro, como resultado da crise do petróleo, e tornou-se mais difícil, para os bancos de investimentos ou bancos comerciais, lidar com os banqueiros internacionais: em lugar da esperada renovação dos empréstimos, surgiu a necessidade de liquidá-los.

Para não reduzir seu ritmo de negócios, ou mesmo para fugir a situações vexatórias, os grupos financeiros passaram a lançar mão dos expedientes de que dispunham: a) oferecer taxas de juros ainda mais altas ao investidor, procurando “fazer caixa”, isto é, obter recursos a qualquer preço; ou b) transferindo recursos de uma instituição do grupo para outra — o que é ilegal.

Nos últimos anos, o mercado financeiro realizava tais operações tranqüilamente. Sabia que atingido um ponto crítico, surgiriam socorros do Banco Central. Sempre a pretexto de não abalar a confiança do público no mercado financeiro, milhões de cruzeiros eram emprestados pelo Banco Central para “corrigir” irregularidades cometidas. Quando elas eram irreparáveis, as autoridades monetárias resolviam a questão diplomaticamente: arrumavam um comprador (a quem emprestavam dinheiro para a compra), encenavam uma “fusão”, e as irregularidades não vinham a público. A tática seria plenamente elogiável se não tivesse dois senões:

  1. a) os responsáveis pelas irregularidades tinham suas torturas intocadas;

  1. b) o mercado continuava a cometer as mesmas irregularidades, certo da impunidade — e da “socialização dos prejuízos”.

O ministro Mário Henrique Simonsen anunciou que, para combater a inflação, os meios de pagamento terão sua expansão contida, este ano, ao nível de 35% (note-se bem: os meios de pagamento vão crescer de 100% para 135%, e não cair em 35%, isto é, de 100% para 65%, em 1973, como o mercado financeiro tenta fazer o publico acreditar, para justificar a “escassez de crédito”).

O ministro sabe que, para essa contenção, é preciso que os bancos e os demais agentes financeiros operem dentro de determinados limites – os limites decididos pelas autoridades monetárias. Nas últimas semanas, talvez testando a nova administração, o mercado financeiro continuou a agir no velho estilo.

A elevação da taxa de juros no mercado aberto e o desrespeito aos limites de operação dos bancos constituíam o mais importante foco inflacionário que o país enfrenta no momento, pois ele ameaçava eternizar a exagerada expansão dos meios de pagamento. A intervenção no grupo Halles surgiu como uma advertência de que a tolerância chegou ao final. A advertência foi ouvida: no final da semana, as taxas de juro no “mercado aberto” declinavam verticalmente após terem chegado até 4% ao mês.

Restou uma pergunta no ar: como fazer para trazer dólares do exterior, e pagar os 5,3 bilhões de dólares de compromissos herdados para este ano? Com decisão, o governo pode contornar também esse problema.


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